Esqueci a escova de dente oficial na outra casa. Aqui só
veio comigo uma condor laranja, daquelas que o cabo vira uma capa para proteger
as cerdas, uma escova vagabunda feita pra estar em qualquer lugar, até na bolsa
de trabalho, onde tudo vive. Do lado dela, em cima da pia, uma pasta de dente
velha demais, nem é sensitive, eu que uso sensitive há tanto tempo, ela tá lá,
dobrada no meio, esperando desesperada a hora de descansar em paz. No banheiro
também tem cotonete, muito cotonete, aquele pote redondo grandão, que boa surpresa, ainda bem que
eu comprei um desses antes de viajar.
Tem algum tempo que eu não escrevo aqui, desculpem a quem
procurou mais coisa e não encontrou. O motivo é que estou homeless: fui chamada às pressas para ir à Vitória para compor a
equipe do Festival de Cinema de lá. Esse trabalho me orgulha bastante. É cheio
de dificuldades. Não, é só feito de dificuldade, ser produtor de evento é
resolver pepino, basicamente. Ainda mais quando o evento não está nadando em
patrocínio. Enfim. Exatamente o que eu precisava para alimentar o meu Espírito
Prático, tão adormecido por tardes de sesta depois regadas a café e leitura e
escrituras, só o irmão tava ganhando comida, o Espírito Criativo, o Prático,
coitado, tava “praticamente” morto. Rá.
Mas então, fui chamada assim, às pressas. Gosto dessa expressão
porque fica parecendo que a gente é super importante. Ninguém dispensável é
chamado “às pressas”, e, se eu fui, é porque precisavam de mim, o que é super
legal e a cara dos trinta anos. Então eu fui. No meio da quizumba da estreia do
programa. Gostaria de estar acompanhando mais de perto a repercussão, mas não
deu, e talvez seja melhor assim. Só sei que fui, e agora parei um pouco para
escrever porque estou no Rio, vim para gravar no meio da produção do Festival,
o que é muito legal, afinal, há duas semanas larguei tudo uma farofa aqui,
agora larguei tudo uma farofa lá, dá uma ventania no cérebro, essa coisa de ponte aérea
rapidinho pra resolver uns troços, você esquece até a escova de dente oficial,
achava você, na hora de fazer a mala, que não ia fazer falta, quando na verdade
tudo o que a gente precisa pra se sentir em casa é a porra da escova de dente
oficial, tem que estar gasta, senão não adianta, não adianta ter uma boa agora,
o efeito é o mesmo da condor laranja vagabunda.
Mas esse papo é besta, e o que eu queria mesmo dividir com
vocês é sobre as minhas impressões das cidades, que estão mudando. Começo a ver
Vitória de um jeito diferente. Uma cidade emprestada. Familiar, mas emprestada,
de ladinho. Começo a ver como a mobilidade é péssima, como a orla é bonita.
Percebo como a cidade passa a ser feita de pessoas, aquelas pessoas que
sincretizam o que sempre vou buscar lá. E que meus olhos já não estão mais
anestesiados quando passa algo novo, construído nos últimos meses. Começo a
ficar de turista, procurando os botecos recém surgidos pra não ficar muito
marginal de tudo que nasce.
Daí que veio essa primeira impressão de que eu estava homeless. Desculpa o termo em inglês,
mas tem umas palavras de outras línguas que são melhores que o português –
poucas, mas existem. E estar homeless é essa sensação de que você não
pertence a lugar nenhum. Ou que carrega a casa nas costas. Gosto do jeito que
Osho descreve isso no seu tarô – ele fala de uma tartaruga, que carrega a casa
nas costas, mas a casa não é tudo que você precisa, é só o que você precisa.
Tipo uma escova de dente, ou menos que isso, se você for mais evoluído budísticamente falando.
Hoje, pela primeira vez, recebi um tapa. Desci no Santos
Dumont blaseé, e acho que foi a primeira vez. Blaseé, sem olhar pros lados, e com aquela alegriazinha no
coração de ter voltado pra casa, de pertencimento à cidade. Agora, é aqui. Que
coisa estranha. Lógico, quando fico aqui por muito tempo tem um pedaço que fica
de fora, que é toda a minha infância, porque o que tenho é um conhecimento da
cidade construído pelo Google Maps e não pelo empirismo. Aprendo o Rio em regras
escritas em caixinhas verdes, como nos livros de inglês, e não ouvindo os mais
velhos falarem sobre isso. E nem os mais
novos. Talvez por isso eu sinta que é estranha a sensação de “que bom! Voltei PRA
CASA” ao descer de um Santos Dumont. E como acho mais fácil lidar com as coisas
aqui, e como fico patinando para pegar um ônibus em Vitória.
Pertencimento é tipo um interruptor, você pode virar uma
chave que ele muda. Sabia? Não é ser homeless,
apesar do que, pra mim, a ausência de um sentimento de casa pode ser a presença
da casa em todos os lugares, é a essa conclusão que ainda não cheguei, se a
gente é um ou outro ou tudo. Só sei que fui pega de surpresa com essa sensação hoje,
eu realmente não estava esperando por isso, e tive que dividir com um amigo que
já mudou algumas cascas de vida, e ele achou tão simples isso tudo, a minha
grande descoberta. Acho que é porque ele já é three way.
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