sexta-feira, 28 de junho de 2013

De como eu sempre me f*$##&*


Prólogo

Comprovei. Toda vez que a gente vai fazer alguma coisa pela primeira vez, é 90% de chance ou algum número parecido de alguma coisa dar errada no processo. E quando a gente muda para outra cidade, é 99% de chance de você ter que fazer uma coisa pela primeira vez todo dia. Faz as contas? É muita m*** que dá numa vida só em pouquíssimo tempo. Por isso, outro dia, escrevi o texto abaixo. Já tem um tempinho, mas acho que define bem como as coisas cotidianas podem ser potencialmente desastrosas. Demorei a postar porque tinha que fechar as palavras tristes, pois que agora venham as infernais.

(Advirto que esse texto tem muito palavrão, se você não fala nem lê palavrão, não leia esse texto)

***

Hoje eu tive que ir ao cartório. Precisava fazer uma procuração para resolver um lance sobre a captação de patrocínio para um filme que estou fazendo – não comecei ainda, tenho um roteiro, meio quebradiço, e o direito divino de que alguma empresa me dê dinheiro para fazê-lo, e uma empresa já concordou com isso, então voltando, precisava dar a meu pai, o aposentado mais próximo, poder para ser meu representante, e antes que pudesse estender minha espada por cima de seus ombros e nomeá-lo meu fiel cavaleiro, ah,  essa seria uma história linda, mas eles só querem o raio do carimbo do cartório dizendo que fui eu que assinei.

Voltando, tive que ir ao cartório. Como toda novata, quis ter certeza absolutíssima que a melhor forma de chegar lá era pelo metrô (parecia óbvio, o cartório fica na Praça General Osório, em Ipanema, onde tem uma estação, e perto da minha casa também tem uma estação, qual a dificuldade porra? Nenhuma. Só... curiosidade. É assim que a gente aprende as coisas. (Fora que fiquei viciada em Google Maps, e não vou mais ao hortifruti sem ter CERTEZA do melhor caminho. E, finalizando, para falar a verdade, prefiro andar de ônibus no Rio, mas essa já é outra história).

Mas sim, o Google Maps disse pra mim que o metrô tava de boa. O céu tava prometendo chuva, mas eu pensei, a estação é na praça, o correio é do outro lado da praça, se rolar uma chuvinha rolou, não vou me molhar muito, é melhor do que andar com um guarda-chuva a tiracolo o tempo todo. E fui lá, toda serelepe e orgulhosa porque não deixei pra fazer amanhã o que é chato demais para ser feito em qualquer ocasião.

Algumas estações depois que me acomodei inclusive sentada (OOOOOOOHHHHHHH, no metrô, sentadinha) e ouvi aquela voz do além (será que é o condutor que fala com a gente? Tem a voz bonita, podia ser locutor. Ou será que tem um locutor? Sempre é tão parecido, parece gravado. Condutor de metrô se chama condutor mesmo?) e aí ele disse “Por conta da construção da nova linha, as estações Cantagalo e General Osório estão fechadas. A estação terminal é Siqueira Campos”. Mmmeeeeeeeeeerrrrrrrrrrrdddaaaaaaaaaaaaaaaaaa, lógico, eu sempre me fodo nesse Rio de Janeiro, caralho, se fosse de carro não seria diferente, ia me perder o tempo inteiro, mas a porra do Google Maps, esse burro nunca consegue ser espontâneo e saber desses imprevistos, imprevisto, aliás, é o caralho, essa nova linha só vai sair nas Olimpíadas e a porra do Google Maps não vai ficar sabendo. Tá bom, eu pego aquele ônibuzinho escroto que eles têm a coragem de chamar de metrô de superfície. Niquiquando o condutor, com sua voz de seda, manda outro recado, “por conta da greve dos rodoviários, o serviço de metrô na superfície temporariamente  não está funcionando”. MMMMmmmeeeeeeeeeeeeeerrrrrrrdddddddddddddaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, vou andando, adoro caminhar, J)) EEEEEE como sou positiva! Não faço a menor ideia de qual é a distância, mas vai ser bom, ver coisas novas... (positiva ou bipolar, tanto faz, mas é melhor aprender a sorrir rápido quando as merdas começam a desencadear).

Saltei na Siqueira Campos (estação que odeio, por sinal, a cara de Copacabana, com aquele monte de vitrine de vestido mal feito, sapato maquiagem ambulante, todo mundo se esbarra, não tem calçada, só ruas e avenidas enooooooorrmessss e um monte, um monte, um monte de gente e fui andando, pra não pensar em mais nada, e a chuva começa a cair fininho, depois vai engrossando, e BBBBÓÓÓÓÓÓO na minha cabeça, POOOORRRRRRRRRAAAAA CARALEEOOOOO saí de casa às duas e meia, são quatro horas e nem chance de estar perto dessa bodega desse cartório, já passou da hora de comer meu lanchinho da tarde, I’m a thirtynager, tenho que comer na hora pra não virar um baiacu, diminuir o meu metabolismo que deve estar fazendo 70 anos, vamos parar nessa birosca, vai ser gostosinho comer um lanche, descansar minhas pernas, ai como sou positiva, porque, meu Deus, POR QUE as pessoas colocam açúcar no suco??? O lugar é descolado, Copacabana lifestyle, cheio de suco verde, pedi um simples minas quente (é como os cariocas chamam pão com queijo minas na chapa), veio no pão integral, se o cara imaginou que estou tentando manter o peso aqui, POR QUE DEMÔNIOS ELE ACHOU QUE EU IA QUERER UM SUCO DE MELANCIA COM AÇÚÚCARAAAAA????

De doce basta a vida, e vamos que vamos que o caminho é looooongo, não sem antes parar no “shopping da China”, esse era o nome da loja de $1.99, engraçado né? Esse nome ficou, mesmo que hoje nada mais valha $1.99, e comprar, no caso, uma sombrinha horrível, por $5.99.

Cheguei em casa às 18h. Voltei de ônibus (lotado, por conta da greve dos Rodoviários). Moral da história? Às vezes, querer deixar pra fazer amanhã pode não ser preguiça. Pode ser intuição. Pode ser seu coraçãozinho escutando a voz do Universo dizendo que hoje não tá legal. Mas se você não conseguir ouvir uma voz poderosa dessa,  pelo menos leva um guarda-chuva quando o tempo estiver fechando.

***

SERVIÇO: segundo o Google Maps, a distância entre a Estação Siqueira Campos e a Praça General Osório é de 2.8km, o que dá um tempo de 34 minutos de caminhada.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

As últimas palavras tristes




Aquela foi a segunda vez que eu matei a minha mãe. Parece um exagero psicológico, mas quem já passou por isso sabe como é. Eu já a havia matado a primeira vez que saí de casa, há quatro anos, e há um ano resolvi matá-la novamente. Não tinha ideia do que essa ausência, em outra dimensão, me causaria. Talvez um pouco de síndrome do pânico. Talvez seja uma reação normal e todo mundo tenta colocar agora um rótulo nas emoções. Ou talvez seja normal ter um pouco de síndrome do pânico.

Sair de casa é matar a mãe da gente um pouqiunho, porque a gente não sabe o que é perder essa companhia até sair da casa dela, a gente também não sabe como é cansativo ser sempre a sua vez de lavar a louça, a gente não tem ideia da raiva que dá ter que estender a roupa num momento que não queremos senão cheira a mofo, a gente fica com saudade de um tempero diferente do nosso, mas mais que tudo isso, que nem toda mãe tem esse lado doméstico, é o cheiro do colo, é aquela pré disposição dos móveis que não teve nada a ver com os seus pitacos, é a segurança que aquela casa inatingível tem. Por isso, quando eu resolvi mudar de cidade, provavelmente por isso, tenha sido um Dia das Mães o dia mais triste que me lembro do ano passado. Porque eu gostaria de estar perto dela, e não pude. Como se tivessem cortado minhas pernas, ou aquela  parte da Constituição que me dá o direito de ir e vir, eu não tinha como comprar a passagem e não podia ir.

Minha família não é afeita a grandes convenções e formalidades, por isso acho que foi muito mais o sentimento de fracasso que a data em si, o que me abalou. Como tudo, hoje olho pro lado e só consigo rir da situação, exagerada que foi, um dia inteiro chorando pela minha incompetência de entender que as coisas precisam de mais tempo do que o que a gente concebe. Ainda dói, às vezes. Sou social demais para não ter pessoas lotando minha casa 24 horas por dia. E se dizem que ninguém é insubstituível, tenho certeza a todo tempo que é o contrário, que todas as pessoas são, mas que a gente sobrevive sem elas, apesar disso. Às vezes dói mais não ter ninguém passando blasé para tomar um café. Em uma cidade maior, isso simplesmente não acontece. Não tem cumadre, não tem amigo trabalhando pertinho, não tem esticar festa na casa de alguém nem doce far niente porque estão todos tão desesperados em chegar nos locais e depois ir para casa, fatigados das distâncias e do tempo encurtado por elas.
 
E é engraçado que as lembranças da minha antiga casa, a “Azul”, que já era só minha, fiquem agora num papel de bala, porque essa outra vida, se puxo pela memória, teve episódios ruins, como quando numa chuva torrencial ela ficou toda alagada. Lembro bem de colocar os fios dos eletrodomésticos para cima, acender algumas velas e rir com meu namorado, “vamos tomar essa cerveja que está na geladeira senão ela vai ficar choca”, com a água pelos joelhos, a lixeirinha que passava boiando por nós e a chuva caindo lá fora com ares de apocalipse.

De vez em quando eu tento lembrar como foi gostoso sair de casa, duas vezes que seja, são diferentes testes dos próprios limites, entender o que se gosta, dormir no sofá no meio da festa porque a bateria acabou e agora frequentar novas lojas R$ 1,99, aí sim, deixar tudo para trás, aí eu aceito de bom grado essas palavras tão limitadas, porque pelo menos uma vida, a última, você necessariamente tem que deixar para trás para ressuscitar em outra. Então a mãe personifica o que é isso, todos os amigos, o cheiro da casa, a temperatura perfeita no outono da Casa Azul, isso teve que ser extirpado dos meus dias e voltam, de vez em quando voltam, mas não sei ainda se nostalgia existe para o bem ou para o mal.     
 
Talvez tenha sido isso o que eu vivi, quando terminei de fazer a mudança, peguei um ônibus para vir para o Rio esperar minhas coisas chegarem aqui. No caminho, que clichê, como eu chorava por fora, não conseguia mesmo segurar as lágrimas, mas como eu ria por dentro, e depois mudava, dava mini gargalhadas enquanto a garganta fechava, vendo as linhas amarelas tracejadas da rodovia, um misto tão estranho de dever cumprido, de um cansaço absurdo, de um frescor do que viria, de uma já saudade do que ficava, e pensei, com tanto riso e choro viro um arco-íris aqui mesmo, antes de chegar, mas vou colocar os óculos e ninguém vai perceber.

Esse texto é para terminar de soltar as minhas palavras pesarosas das últimas quatro estações. Não faz meu gênero e me cansa bastante essa coisa de olhar para trás, com tanta coisa dos lados e mais ainda à frente. A partir daqui escrevo mais sobre o presente,  e o que há de triste há de ser aposentado, que palavra é capim que já foi ruminado e estraga se fica no tempo.

domingo, 16 de junho de 2013

Sobre as incertezas e do que já sei


“Você vai voltar?”

Minha amiga não tinha ideia de quantas vezes eu já tinha ouvido essa frase. Mais um clichê. Sair da cidade natal é quase como ter um filho, no aniversário do primeiro ano tem que fazer uma baita festa, não é pela criança, é pra todo mundo ver que a gente sobreviveu bem. Mas, no final, essa pergunta só faz sentido para quem questiona. “Você vai voltar?” Eu fiz questão de dar três nós nessa fita cassete, não dá pra voltar, virei outra coisa, tenho outra casa, pego outros ônibus,  troquei de casca. Não é que seja impossível, mas agora, nesse momento, ainda me parece que vivi pouco dessa vida, e tanta coisa já aconteceu que nesse ano cabem dez, então, de vez em quando, eu me lembro porque tudo começou.

Muita gente me pergunta porque eu quis mudar. Eu não quis. Eu não tive opção, digo sempre que “fui chutada”. Estar no auge da sua carreira profissional antes dos 30 não é sinal da sua genialidade, como muitos pensam. É sinal de embotamento. É ir matando sua possibilidade de crescimento quando você ainda é um zigoto. Também não vim para ser famosa, o que parece ser a primeira coisa que as pessoas pensam. Nem para ficar rica, nem para ir para a Globo. Eu vim para não destruir a possibilidade de qualquer uma dessas coisas acontecerem. Para abrir meu futuro de novo, porque do jeito que a coisa ia, já estava tudo mais previsível que filme
hollywoodiano...

Comecei "a vir" para o Rio há muitos anos. Sempre gostei da cidade. Desde muito nova, fazendo teatro,  imaginava como seria morar em um lugar onde essa arte borbulha. Depois, adolescente, vinha para a casa de um amigo e lembro de achar que as pessoas me incluíam sem muita frescura, nas rodas, nos assuntos. Bem diferente da minha cidade, onde é feio falar primeiro com uma pessoa, a etiqueta manda mais ou menos você ficar quieto, porque é bem capaz de a pessoa não querer te cumprimentar de volta. Coisas que nunca entendi de lá.

Mas aqui, lembro de ficar extasiada com uma festa que fui, ainda muito jovem, nem lembro quem me levou, o fato é que chegamos umas duas horas antes de a festa começar, porque assim já estava combinado, e chegando lá já haviam convidados, e todos foram antes para ajudar a preparar a festa. Achei que aquilo fez todo o sentido. E no final, quem pôde ficou para ajudar a desmontar tudo, o que fez mais sentido ainda. E a etiqueta de ter tudo lindo, e no final da festa, tudo horrível e desmoronado, só para o dono da casa, me pareceu muito estranho. Por essas e outras eu sempre tive um fascínio pelo Rio.

Desse processo, nada paga o friozinho na barriga de não saber no que vai dar, tirar cada pincelada do quadro e transformar a tela em branca de novo. Lembro de estar sentada em um boteco na Lapa, com um amigo muito próximo, e ele me perguntou o que eu faria para sobreviver. Não sei. TV? Teatro? Cinema? Jornal Impresso? Rádio? Na minha vida antiga eu era uma profissional de TV. Agora posso ser o que eu quiser. Talvez nada disso, inclusive! Respondi que deixaria o povo daqui decidir.

Claro que, mesmo sem expectativas fechadas, chegando aqui muita coisa foi por terra. Infelizmente esse é um canto que, por herança histórica ou dificuldade de viver, muita gente supervaloriza o já batido jeitinho brasileiro para as coisas. As pessoas tentam te passar a perna, porque é quase um esporte. Não importa se roubar dez centavos ou mil reais, o que vale é a satisfação de te fazer de bobo. É a coisa, com certeza, mais triste que sinto sobre os cariocas. Claro que estou generalizando. Como jornalista, é isso que faço o tempo todo. Mas é uma impressão que ficou, e longe de querer parecer realidade, e mais longe ainda de significar que TODO MUNDO aqui é desonesto, o fato é que as atitudes nesse sentido me chamaram a atenção, o que já merece nota. “Se você fechar com a gente vai se dar bem”, já ouvi isso de um cara que estava me propondo uma amizade...   

Outra coisa: o Rio é podre. É sujo, é fétido, cheira a gás da tubulação dos banheiros com chorume, que é aquele suco de laranja apodrecido no lixo. E as coisas são mal ajambradas, o que mais se vê por aí é gato, de energia mesmo, mil fios saindo do mesmo poste, calçadas mal cuidadas, ruas sujas. Nem tudo é zona sul, nem tudo é novela maquiando os velhos de Copacabana com time lapses infindáveis, nem tudo é ator escondido debaixo de óculos e boné numa paisagem de tirar o fôlego. Mas tem a paisagem, que é de tirar o fôlego. E tem um monte de coisas mais, que tornam de verdade essa terra apaixonante.

Adoro o fato de lugares muito simples terem um serviço fantástico. Gosto da tradição de certas coisas. Amo passear por ruas que tem nomes ainda do tempo do Brasil colonial, e prédios enormes, com janelas enormes, pinturas no teto e tapetes. Mas de longe, o que eu mais curto é esse jeitão carioca de falar com todo mundo. Ser jornalista aqui é fácil demais, você dá bom dia e estende o microfone, a pessoa vai te contar a vida dela num piscar de olhos. (Lembro ainda com um certo trauma como tinha que tirar leite de pedra pra fazer um “povo fala”, que é basicamente tirar uma resposta, uma respostinha pra uma questão em especial, de várias pessoas na rua. Perdíamos uma tarde, e muitas vezes sem conseguir completar a missão).

Mas enfim, o que me trouxe para o Rio foi uma aposta pessoal, eu tinha que saber se realmente a arte alimenta o espírito das pessoas. Há um ano, ainda bem,  estou ganhando essa aposta. A arte não só alimenta, pode acreditar, ela transforma as pessoas em melhores. Eu vim para cá com um espírito faminto e não estou dando conta da obesidade em que me encontro, e isso faz o meu estado de graça nessa terra se tornar tão claro para as pessoas. Claro que muita coisa artística acontecia também na antiga cidade, mas não com essa profusão, com essa facilidade, com essa bunda exposta na rua. Adoro perceber como sou ignorante, quanto filme de país que não conheço direito faz sucesso, quantos artistas eu nunca ouvi falar, e mais ainda, fico felicíssima em ver exposições com os quadros que conheci nos livros, e lincar referências tão distantes com objetos concretos que trazem tanta história que chegam a cheirar.

Então, a parte boa dessa história é que tem um final feliz. Final não, que tá no meio, quiçá no início. Estou trabalhando, estou super alegre com o que faço, é ainda melhor do que pude desejar para mim mesma nesse ano.  Gosto da minha casa, dos novos amigos, da minha relação com minha cidade natal, com a atual e com o mundo. Além de ter alimento de sobra para o meu espírito, sinto que consegui atingir meu principal objetivo.

 “Você vai voltar?”

Não sei. Talvez com uns 70 anos. Só sei que passei por muita coisa para ter o direito de não saber.
Google

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Sobre os apartamentos (horríveis) do Rio



Vou falar um pouco sobre os apartamentos do Rio de Janeiro porque, como postei anteriormente, eles precisam de um texto à parte.

Eu pensava que o estilo norteamericano de se viver numa casa (separada por cômodos, TV na sala, cozinha com geladeira, fogão, área de serviço e banheiros) era um padrão na cultura ocidental, até eu começar a procurar apartamento aqui. Daí que eu percebi que o padrão quem impõe é a Lei da Oferta e da Procura, e se você procura em uma cidade pré-Copa, pré-Olímpiadas e blá blá blá, então a oferta é blá blá blá blá blá blá. Vocês já sabem.  Mas vou expor alguns detalhes.

Havia eu saído da minha agradável casinha azul com árvore no quintal para procurar um apartamento no Rio de Janeiro. Logo percebi que, do jeito que estava, sem renda, com a poupança de um carro vendido, pagando em euro no Rio o que eu tinha vendido em real no Espírito Santo, eu teria que trocar meu três quartos por um quartão. Isso quer dizer que entrei em muito conjugado pra ver a cara disso.

Conjugado é um termo que se usa para um espaço que aglutina tudo o que não coube no resto do apartamento. Quer dizer que você só tem uma cozinha com uma báscula, um banheiro com uma báscula e um quarto / tv / e tudo o mais que vc precisar nesse cômodo maior. Para ficar atraente, muitos chamavam de “conjugadão”, porque esse espaço era um pouco maior. Para roubar os outros, muitos separam os conjugados por uma fina parede para chamar de quarto e sala, o que não é plausível, olhem só o que descobri, para um cômodo valer como tal, tem que haver uma janela ou saída de ar dele. Não é legal? Se sua sala não tem janela, então perdão, não é uma sala.

Aliás, ler o classificados atrás de uma apartamento pagável para a classe média ou baixa é uma coisa realmente engraçada por aqui. É normal ler “cozinha cabe fogão” ou “cozinha cabe geladeira”, o que significa que no primeiro a geladeira não cabe e, no segundo, o fogão. “Indevassável” quer dizer que não tem ninguém te espionando a menos de 20 metros. “Próximo ao metrô” pode significar “espero que você goste de caminhar” e “novo” é igual a “feito na década de 70”.

Aqui no Rio também tem uma coisa engraçada:  eles chamam de kitchen uma cozinha que não existe. Fui a um apartamento e perguntei o que era uma cozinha kitchen ainda pelo telefone. “É uma cozinha pequena, para fazer só o básico”, disse o corretor, “mas eu adoro cozinhar, dá pra cozinhar?”, perguntei, “dá sim, com jeitinho dá”, disse ele. Chegando lá, a cozinha era um mini beco. Isso mesmo, gente, era um beco, e era mini. Só cabia uma pia e, em cima da pia, um armário. Lembrei logo o porquê de o anúncio trazer “cozinha kitchen com armários”! Huahauuhaauhua, e eram dois armários, porque havia duas portas.

Muito angustiada com mais uma decepção e ainda por cima com o corretor que me fez ir olhar uma cozinha kitchen que só dá pra cozinhar um mac donald’s, vi um nicho que adentrava a parede acima da pia, uns cinco centímetros para dentro, formando um quadradão como se tivesse sido carcormido, mas coberto de azulejo. Virei para o corretor e falei “cozinha kitchen com armários? Que bom né? Cabe até o microondas de plasma que eu tenho. É só colocar o prato na vertical e ver ele girando como um vinil!”, e saí, revoltada mais uma vez.

Muitos apartamentos são divididos, o que quer dizer que antes eram grandes, moravam famílias que agora alugam, então eles fazem minúsculas moradias repartidas de uma forma que não tem a menor lógica. Logo que cheguei, olhei vários assim em Copacabana (todo mundo fica iludido com Copa, porque é Zona Sul, e tal, mas fiquei traumatizada, como explicarei logo a seguir). Essa divisão grotesca impede, por exemplo, que os apartamentos tenham área de serviço. Aqui, é normal encontrar tanques no box do banheiro, máquinas de lavar ao lado do vaso sanitário e – pasmem – até varal em cima do chuveiro eu já encontrei (como a roupa seca, gente????).

Outra coisa muito comum são os jardins de inverno. Do tamanho de uma cozinha kitchen, eles são um adendo de qualquer apartamento, até os minúsculos, e servem para você colocar suas plantas. Plantas???? Quem vai pensar em separar um espaço para plantas num apto de 30m2, gente???? Tô falando grego aqui? Mas acho que só eu penso assim, aqui as plantas são obrigatórias em qualquer lugar, tanto é que em toda praça tem uma lojinha delas. Não me levem a mal, adoro plantas, mas não gastaria mais que 10cm com uma violeta num espaço de 30m2, é uma questão territorial.

Antes de conseguir o meu apartamento, morei em dois, ambos em Copacabana, durante um mês em cada. São os chamados apartamentos de temporada, para turistas que ficam mais tempo por aqui. Lembro que paguei pelo menos R$ 1.000,00 mais contas para cada mês, e os apês eram um pouquinho, digamos assim, traumatizantes.

O primeiro foi apelidado carinhosamente de Cogumelo, porque era pequeno, quente, úmido e malcheiroso. Eu limpava o bicho todo dia, mas as básculas da cozinha e do banheiro davam direto pro encanamento do prédio, sempre com vazamentos, então o apê fedia a esgoto o tempo inteiro. Era separado por uma fina parede de gesso, fazendo dele um pseudo-quarto-sala. Não pegava celular, mas era muitíssimo bem localizado, então não me traumatizou muito (a não ser pela cor da parede da sala, um verde-água horrível, muita gente escolhe essa cor pra pintar fachadas e eu sempre penso que essa tinta vive em promoção).

O segundo apartamento ficava na zona de prostituição de Copacabana. Era maior que o primeiro, por isso levou o nome de Palace. O Palace ficava na avenida mais agitada de Copa, e o apê era uma espécie de sala comercial transformada em moradia, com uma cozinha micro (bem maior que a kitchen) onde mil baratinhas moravam, um quarto separado da sala por aquelas divisórias de escritório. Ficava no primeiro andar, e fazia tanto barulho e entrava tanta poeira dos carros durante o dia que só dava para ver TV no volume máximo e sempre com as janelas fechadas.

Nesse só tinha um tanquinho para lavar as roupas, o que me fez traumatizar com tanquinhos, que não servem para absolutamente nada, se a gente tem que esfregar a roupa e torcer, ter uma máquina pra enxaguar é só pra rir da minha cara mesmo. Ficava no banheiro essa máquina. A pele das minhas mãos tinha feridinhas de esfregar roupa, nessa época. Lembro que eu estendia num varalzinho de pé, num canto que pegava o sol da tarde, porque com as janelas fechadas sempre dava cheiro de mofo, de roupa mal seca.

E eu sempre fazia o jantar em casa, para economizar e também para manter a dignidade, o que era mais um desafio, porque as panelas eram realmente horríveis e ainda havia o probleminha das baratas. Na hora de dormir, eu sentia a vibração dos caminhões que passavam pela avenida na minha cama, e por essas e outras que sou absolutamente traumatizada com Copacabana.

Foi ótimo – e necessário – passar por tudo isso. Tenho certeza que era a prova que eu precisava para entender o que seria tomar as rédeas da minha nova vida mais uma vez. Uma prova super difícil, mas que me deixou mega forte, me ensinou sobre os bairros do Rio, os nomes de centenas de ruas de Copacabana, Flamengo, Laranjeiras, Botafogo, Catete, Tijuca. Sei como é o clima de cada bairro e me sinto em casa. E, principalmente, me deu a certeza de que muitas vezes a gente está vencendo a batalha quando coloca a cabeça no travesseiro. É quando a gente chora, relembra, sorri, pede pelamordedeus, imagina o que quer, tem certeza do que não quer. Eu trabalhei muito mais para conseguir o que queria à noite, sonhando, mentalizando e tentando não ser muito egoísta. Eram corriqueiras rezas como essa: “podia ter dois banheiros, na minha casa azul só tinha um e isso era meio ruim. Mas não é tão necessário, se estou pedindo muito, pode ser só um. Mas tem que ter um quartinho para as visitas, que adoro receber. Mas só se for possível! E uma cozinha onde caiba todos os meus eletrodomésticos. Mas se não couber, eu dou um jeitinho também. E pelamordedeus, que eu tenha onde secar direito minhas roupas!!!!”...

Já muitíssimo calejada, acabei encontrando um apartamento na Tijuca, mas não acreditava que conseguiria o contrato, depois de quatro meses tentando e sempre alguém passando na minha frente. Corri atrás de tudo o que me pediam, como uma máquina respondia e-mails, e depois de muito esforço, choro, gritaria, jogo de cintura, consegui.  Eu o chamo de Casa Colorida, porque meu senso de decoração é estilo rústico-disléxico. Não é que ela não tenha defeitos – já veio inclusive com o chão da cozinha rachado. Mas tem uma grande sala, dois quartos, (apesar de um deles não ter janela, é o mais bem ventilado). Também tem dois banheiros, obviamente um deles fazia parte da dependência, mas eu o trato com todo carinho, como se fosse o social. Tenho uma varanda onde minhas plantas vivem e me lembram da benção que é recomeçar a cada estação. Na minha cozinha cabe minha geladeira, meu fogão, pia, secador de pratos, despensa, mesa. A área de serviço abriga minha querida máquina de lavar de quinze quilos, e em cima dela, dois varais.