Essa semana me acometeu uma dúvida atroz. Mandaram-me uma mensagem dizendo que a Ancine abriu concurso. Salário de cerca de dez mil reais. Quinze vagas só para a minha área. Me deu um nó.
Será que não estava na hora de buscar a minha estabilidade?
Fiz uma breve pesquisa, havia cursinhos preparatórios começando agora, o
investimento para fazer a prova sairia por uns mil reais, não é tão caro para o
possível resultado, mas bem salgadinho para quem ainda não tem lá muitas moedas
sobrando no fim do mês. Para completar a missão de me confundir completamente, fiquei
imaginando o que daria para fazer com esse dinheiro. Engravidar? Mudar de apartamento
para alguma coisa mais perto da área “nobre” do Rio? Fazer os cursos que tanto
quero fazer aqui, de roteiro ou direção de cinema? E para quê, se o cargo é de
quarenta horas semanais, exatamente o tempo que leva para pegar toda a sua vida
e resumi-la a um domingo, que sobra pra tentar recobrar as energias na cama?
Ainda assim, tentador, para a taurina que sou, na verdade é uma proposta de
lamber os beiços. Mas lá no íntimo alguma coisa me travava de embarcar nessa.
Talvez o medo profundo de acabar passando no raio do concurso, talvez o pavor
de não passar.
Não me perguntem atrás do quê estou correndo atrás nesse
momento. Estabilidade é bom e todo mundo gosta, ainda mais com um salário gordo
que te permite viajar, conhecer outros países, aproveitar a vida. Mas eu também
sei de algumas coisas simples que fazem extremamente feliz, como entrevistar
pessoas interessantes, conhecer lugares novos, escrever histórias, me aproximar
de gente maluca. E até que falando assim, eu já estou conseguindo tudo isso, só
quero mais, e num escritório é muito provável que não aconteça nada dessas
coisas em profusão. Mas quem sabe nas férias?...
Resolvi que a melhor forma de chegar a uma conclusão era
exatamente conversando com pessoas que já alcançaram a tão querida
estabilidade. Tenho alguns amigos, assim, digamos que fantásticos. Extremamente
inteligentes, ocupam diversos cargos em grandes empresas ou instituições, todos
efetivados em cargos públicos. E todos me dão uma impressão de levarem uma vida
feliz, mas cá com os meus botões eu gostaria que eles tivessem mais tempo para
explorar seus lados criativos, que são tão impressionantes quanto a
estabilidade que conseguiram galgar. A dúvida, portanto, permanecia.
“Faz! Tenta sim”, foi o que todos responderam de cara. Aí
sempre se seguia a minha explicação, uma verdadeira palestra que todos ouviram
com a maior atenção, na qual eu defendia de onde minha dúvida saía: o que esses
dez mil representavam não era a minha estabilidade, mas sim a compra da minha
criatividade. “Tenta, se você passar, aí você vê”, era a segunda resposta de
todos eles. Mas ninguém é tão ingênuo de pensar que se eu passar num troço desses
vou ter autocontrole o bastante para fugir da raia blasée, “não, obrigada,
prefiro continuar tentando ganhar dinheiro com minha criatividade”. Rá.
Essa loucura dos concursos públicos no Brasil fez, de fato,
um monte de gente ficar doida. E o corporativismo traz em si um sistema hierárquico
fajuto que me parece começar a ruir. Vou explicar: um desses amigos fantásticos
me mandou um texto muito interessante que trazia uma frase que me marcou demais.
Ela dizia mais ou menos isso: “Trabalhe corretamente e com afinco por oito
horas todo santo dia que, se você merecer e der sorte, virará patrão e
trabalhará doze horas por dia”. Lembrei de cara de um outro amigo, também
concursado, que já recebeu várias propostas de promoção em seu emprego. Recusou
todas. Diz ele que o dinheiro que ganha já está bom para a vida que leva, e o
que viria a mais com a promoção não paga a qualidade de vida que ele sabe que
perderia com o acúmulo de responsabilidades. (Esse amigo, em outra ocasião, já
esteve internado num hospício, e hoje tenho certeza absoluta que é porque o
mundo inteiro é doido e ele é lúcido demais).
Se você pensa que esse é um caso pontual, preste atenção: outra
amiga já teve um belo salário sendo jornalista (!!!!!!) e pediu pelamordedeus
por uma “despromoção” (acho que o termo foi cunhado por ela, porque antes a
prática não existia no mundo). O chefe se recusou, e ela pediu demissão pouco
tempo depois. Hoje ela é funcionária pública, portanto já passou também em um
concurso, recebe a metade do salário grande que recebia antes, mas trabalha em
sua área, cinco horas por dia, com sábado, domingo, feriado.
Voltando ao primeiro amigo, o que me passou o texto. Ele
mesmo, esses dias, estava também numa dificuldade tremenda de dizer não ao
chefe, que quer promovê-lo a todo custo, e isso há anos, e olha que o cargo que
ele ocupa atualmente não é dos menores. Dito isso, ao fim dessa semana ele me
ligou, comunicando que chegara a uma decisão muito importante de sua vida. “Vou
falar com meu chefe. Vai ser um inferno, mas terei que encará-lo e dizer que
não quero a promoção. Está na hora de engordar minha vida”, disse-me.
No fim das conversas, todos chegaram à conclusão de que eu não
deveria sequer tentar o tal concurso. “Não quero te ver despachando processo
burocrático, quero te ver na TV, ou escrevendo, ou fazendo alguma coisa que sei
que vai importar”. “Você está chegando no tempo normal das melhores coisas
começarem a acontecer, não se precipite”. “Você é boa demais e ainda vai
descobrir isso, e vai ganhar o salário que quiser fazendo o que faz”. Frases
elogiosas demais, que a amizade faz brilhar a percepção, eu sei, mas para mim as
palavras podem virar escapulários, guardamos na memória para recorrer a elas,
como orações, bençãos, mantras se necessário.
A conclusão maior – e mais triste – dessa semana, para mim, saiu
de um telefonema com o primeiro amigo, não o louco do hospício, o louco que vai
recusar a promoção desejada pelo mundo inteiro, graças a Deus, que ele está
começando a colocar os pés no chão, e no chão que ele quer, o que é mais
importante, e conversando a gente pensou junto, a falta de dinheiro escraviza,
mas a abundância dele, também. A minha
segunda adolescência é minha grande chance de fazer de novo, e que seja assim.
Nem que eu tenha que voltar a tomar xiboquinha. Não, prefiro ficar sóbria a
tomar xiboquinha. Mas se precisar, talvez eu tente umas caipirinhas, em algum
lugar novo, com essa gente maluca, bacana e despromovida.
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