domingo, 16 de junho de 2013

Sobre as incertezas e do que já sei


“Você vai voltar?”

Minha amiga não tinha ideia de quantas vezes eu já tinha ouvido essa frase. Mais um clichê. Sair da cidade natal é quase como ter um filho, no aniversário do primeiro ano tem que fazer uma baita festa, não é pela criança, é pra todo mundo ver que a gente sobreviveu bem. Mas, no final, essa pergunta só faz sentido para quem questiona. “Você vai voltar?” Eu fiz questão de dar três nós nessa fita cassete, não dá pra voltar, virei outra coisa, tenho outra casa, pego outros ônibus,  troquei de casca. Não é que seja impossível, mas agora, nesse momento, ainda me parece que vivi pouco dessa vida, e tanta coisa já aconteceu que nesse ano cabem dez, então, de vez em quando, eu me lembro porque tudo começou.

Muita gente me pergunta porque eu quis mudar. Eu não quis. Eu não tive opção, digo sempre que “fui chutada”. Estar no auge da sua carreira profissional antes dos 30 não é sinal da sua genialidade, como muitos pensam. É sinal de embotamento. É ir matando sua possibilidade de crescimento quando você ainda é um zigoto. Também não vim para ser famosa, o que parece ser a primeira coisa que as pessoas pensam. Nem para ficar rica, nem para ir para a Globo. Eu vim para não destruir a possibilidade de qualquer uma dessas coisas acontecerem. Para abrir meu futuro de novo, porque do jeito que a coisa ia, já estava tudo mais previsível que filme
hollywoodiano...

Comecei "a vir" para o Rio há muitos anos. Sempre gostei da cidade. Desde muito nova, fazendo teatro,  imaginava como seria morar em um lugar onde essa arte borbulha. Depois, adolescente, vinha para a casa de um amigo e lembro de achar que as pessoas me incluíam sem muita frescura, nas rodas, nos assuntos. Bem diferente da minha cidade, onde é feio falar primeiro com uma pessoa, a etiqueta manda mais ou menos você ficar quieto, porque é bem capaz de a pessoa não querer te cumprimentar de volta. Coisas que nunca entendi de lá.

Mas aqui, lembro de ficar extasiada com uma festa que fui, ainda muito jovem, nem lembro quem me levou, o fato é que chegamos umas duas horas antes de a festa começar, porque assim já estava combinado, e chegando lá já haviam convidados, e todos foram antes para ajudar a preparar a festa. Achei que aquilo fez todo o sentido. E no final, quem pôde ficou para ajudar a desmontar tudo, o que fez mais sentido ainda. E a etiqueta de ter tudo lindo, e no final da festa, tudo horrível e desmoronado, só para o dono da casa, me pareceu muito estranho. Por essas e outras eu sempre tive um fascínio pelo Rio.

Desse processo, nada paga o friozinho na barriga de não saber no que vai dar, tirar cada pincelada do quadro e transformar a tela em branca de novo. Lembro de estar sentada em um boteco na Lapa, com um amigo muito próximo, e ele me perguntou o que eu faria para sobreviver. Não sei. TV? Teatro? Cinema? Jornal Impresso? Rádio? Na minha vida antiga eu era uma profissional de TV. Agora posso ser o que eu quiser. Talvez nada disso, inclusive! Respondi que deixaria o povo daqui decidir.

Claro que, mesmo sem expectativas fechadas, chegando aqui muita coisa foi por terra. Infelizmente esse é um canto que, por herança histórica ou dificuldade de viver, muita gente supervaloriza o já batido jeitinho brasileiro para as coisas. As pessoas tentam te passar a perna, porque é quase um esporte. Não importa se roubar dez centavos ou mil reais, o que vale é a satisfação de te fazer de bobo. É a coisa, com certeza, mais triste que sinto sobre os cariocas. Claro que estou generalizando. Como jornalista, é isso que faço o tempo todo. Mas é uma impressão que ficou, e longe de querer parecer realidade, e mais longe ainda de significar que TODO MUNDO aqui é desonesto, o fato é que as atitudes nesse sentido me chamaram a atenção, o que já merece nota. “Se você fechar com a gente vai se dar bem”, já ouvi isso de um cara que estava me propondo uma amizade...   

Outra coisa: o Rio é podre. É sujo, é fétido, cheira a gás da tubulação dos banheiros com chorume, que é aquele suco de laranja apodrecido no lixo. E as coisas são mal ajambradas, o que mais se vê por aí é gato, de energia mesmo, mil fios saindo do mesmo poste, calçadas mal cuidadas, ruas sujas. Nem tudo é zona sul, nem tudo é novela maquiando os velhos de Copacabana com time lapses infindáveis, nem tudo é ator escondido debaixo de óculos e boné numa paisagem de tirar o fôlego. Mas tem a paisagem, que é de tirar o fôlego. E tem um monte de coisas mais, que tornam de verdade essa terra apaixonante.

Adoro o fato de lugares muito simples terem um serviço fantástico. Gosto da tradição de certas coisas. Amo passear por ruas que tem nomes ainda do tempo do Brasil colonial, e prédios enormes, com janelas enormes, pinturas no teto e tapetes. Mas de longe, o que eu mais curto é esse jeitão carioca de falar com todo mundo. Ser jornalista aqui é fácil demais, você dá bom dia e estende o microfone, a pessoa vai te contar a vida dela num piscar de olhos. (Lembro ainda com um certo trauma como tinha que tirar leite de pedra pra fazer um “povo fala”, que é basicamente tirar uma resposta, uma respostinha pra uma questão em especial, de várias pessoas na rua. Perdíamos uma tarde, e muitas vezes sem conseguir completar a missão).

Mas enfim, o que me trouxe para o Rio foi uma aposta pessoal, eu tinha que saber se realmente a arte alimenta o espírito das pessoas. Há um ano, ainda bem,  estou ganhando essa aposta. A arte não só alimenta, pode acreditar, ela transforma as pessoas em melhores. Eu vim para cá com um espírito faminto e não estou dando conta da obesidade em que me encontro, e isso faz o meu estado de graça nessa terra se tornar tão claro para as pessoas. Claro que muita coisa artística acontecia também na antiga cidade, mas não com essa profusão, com essa facilidade, com essa bunda exposta na rua. Adoro perceber como sou ignorante, quanto filme de país que não conheço direito faz sucesso, quantos artistas eu nunca ouvi falar, e mais ainda, fico felicíssima em ver exposições com os quadros que conheci nos livros, e lincar referências tão distantes com objetos concretos que trazem tanta história que chegam a cheirar.

Então, a parte boa dessa história é que tem um final feliz. Final não, que tá no meio, quiçá no início. Estou trabalhando, estou super alegre com o que faço, é ainda melhor do que pude desejar para mim mesma nesse ano.  Gosto da minha casa, dos novos amigos, da minha relação com minha cidade natal, com a atual e com o mundo. Além de ter alimento de sobra para o meu espírito, sinto que consegui atingir meu principal objetivo.

 “Você vai voltar?”

Não sei. Talvez com uns 70 anos. Só sei que passei por muita coisa para ter o direito de não saber.
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