“Você vai voltar?”
Minha amiga não tinha ideia de quantas vezes eu já tinha
ouvido essa frase. Mais um clichê. Sair da cidade natal é quase como ter um
filho, no aniversário do primeiro ano tem que fazer uma baita festa, não é pela
criança, é pra todo mundo ver que a gente sobreviveu bem. Mas, no final, essa
pergunta só faz sentido para quem questiona. “Você vai voltar?” Eu fiz questão
de dar três nós nessa fita cassete, não dá pra voltar, virei outra coisa, tenho
outra casa, pego outros ônibus, troquei
de casca. Não é que seja impossível, mas agora, nesse momento, ainda me parece
que vivi pouco dessa vida, e tanta coisa já aconteceu que nesse ano cabem dez,
então, de vez em quando, eu me lembro porque tudo começou.
Muita gente me pergunta porque eu quis mudar. Eu não quis.
Eu não tive opção, digo sempre que “fui chutada”. Estar no auge da sua carreira
profissional antes dos 30 não é sinal da sua genialidade, como muitos pensam. É
sinal de embotamento. É ir matando sua possibilidade de
crescimento quando você ainda é um zigoto. Também não vim para ser famosa, o
que parece ser a primeira coisa que as pessoas pensam. Nem para ficar rica, nem
para ir para a Globo. Eu vim para não destruir a possibilidade de qualquer uma
dessas coisas acontecerem. Para abrir meu futuro de novo, porque do jeito que a
coisa ia, já estava tudo mais previsível que filme
hollywoodiano...
hollywoodiano...
Comecei "a vir" para o Rio há muitos anos. Sempre gostei da
cidade. Desde muito nova, fazendo teatro,
imaginava como seria morar em um lugar onde essa arte borbulha. Depois, adolescente,
vinha para a casa de um amigo e lembro de achar que as pessoas me
incluíam sem muita frescura, nas rodas, nos assuntos. Bem diferente da minha
cidade, onde é feio falar primeiro com uma pessoa, a etiqueta manda mais ou
menos você ficar quieto, porque é bem capaz de a pessoa não querer te
cumprimentar de volta. Coisas que nunca entendi de lá.
Mas aqui, lembro de ficar extasiada com uma festa que fui,
ainda muito jovem, nem lembro quem me levou, o fato é que chegamos umas duas
horas antes de a festa começar, porque assim já estava combinado, e chegando lá
já haviam convidados, e todos foram antes para ajudar a preparar a festa. Achei
que aquilo fez todo o sentido. E no final, quem pôde ficou para ajudar a desmontar tudo, o que fez
mais sentido ainda. E a etiqueta de ter tudo lindo, e no final da festa, tudo horrível
e desmoronado, só para o dono da casa, me pareceu muito estranho. Por essas e
outras eu sempre tive um fascínio pelo Rio.
Desse processo, nada paga o friozinho na barriga
de não saber no que vai dar, tirar cada pincelada do quadro e transformar a
tela em branca de novo. Lembro de estar sentada em um boteco na Lapa, com um
amigo muito próximo, e ele me perguntou o que eu faria para sobreviver. Não
sei. TV? Teatro? Cinema? Jornal Impresso? Rádio? Na minha vida antiga eu era
uma profissional de TV. Agora posso ser o que eu quiser. Talvez nada disso,
inclusive! Respondi que deixaria o povo daqui decidir.
Claro que, mesmo sem expectativas fechadas, chegando aqui
muita coisa foi por terra. Infelizmente esse é um canto que, por herança histórica
ou dificuldade de viver, muita gente supervaloriza o já batido jeitinho
brasileiro para as coisas. As pessoas tentam te passar a perna, porque é quase
um esporte. Não importa se roubar dez centavos ou mil reais, o que vale é a
satisfação de te fazer de bobo. É a coisa, com certeza, mais triste que sinto
sobre os cariocas. Claro que estou generalizando. Como jornalista, é isso que faço
o tempo todo. Mas é uma impressão que ficou, e longe de querer parecer realidade,
e mais longe ainda de significar que TODO MUNDO aqui é desonesto, o fato é que
as atitudes nesse sentido me chamaram a atenção, o que já merece nota. “Se você
fechar com a gente vai se dar bem”, já ouvi isso de um cara que estava me
propondo uma amizade...
Outra coisa: o Rio é podre. É sujo, é fétido, cheira a gás
da tubulação dos banheiros com
chorume, que é aquele suco de laranja apodrecido no lixo. E as coisas são mal
ajambradas, o que mais se vê por aí é gato, de energia mesmo, mil fios saindo
do mesmo poste, calçadas mal cuidadas, ruas sujas. Nem tudo é zona sul, nem
tudo é novela maquiando os velhos de Copacabana com time lapses infindáveis, nem tudo é ator escondido debaixo de
óculos e boné numa paisagem de tirar o fôlego. Mas tem a paisagem, que é de
tirar o fôlego. E tem um monte de coisas mais, que tornam de verdade essa terra
apaixonante.
Adoro o fato de lugares muito simples terem um serviço fantástico.
Gosto da tradição de certas coisas. Amo passear por ruas que tem nomes ainda do
tempo do Brasil colonial, e prédios enormes, com janelas enormes, pinturas no
teto e tapetes. Mas de longe, o que eu mais curto é esse jeitão carioca de
falar com todo mundo. Ser jornalista aqui é fácil demais, você dá bom dia e
estende o microfone, a pessoa vai te contar a vida dela num piscar de olhos. (Lembro
ainda com um certo trauma como tinha que tirar leite de pedra pra fazer um “povo
fala”, que é basicamente tirar uma resposta, uma respostinha pra uma questão em
especial, de várias pessoas na rua. Perdíamos uma tarde, e muitas vezes sem
conseguir completar a missão).
Mas enfim, o que me trouxe para o Rio foi uma aposta
pessoal, eu tinha que saber se realmente a arte alimenta o espírito das pessoas.
Há um ano, ainda bem, estou ganhando
essa aposta. A arte não só alimenta, pode acreditar, ela transforma as pessoas
em melhores. Eu vim para cá com um espírito faminto e não estou dando conta da
obesidade em que me encontro, e isso faz o meu estado de graça nessa terra se
tornar tão claro para as pessoas. Claro que muita coisa artística acontecia
também na antiga cidade, mas não com essa profusão, com essa facilidade, com
essa bunda exposta na rua. Adoro perceber como sou ignorante, quanto filme de
país que não conheço direito faz sucesso, quantos artistas eu nunca ouvi falar,
e mais ainda, fico felicíssima em ver exposições com os quadros que conheci nos
livros, e lincar referências tão distantes com objetos concretos que trazem tanta
história que chegam a cheirar.
Então, a parte boa dessa história é que tem um final feliz. Final não, que tá no meio, quiçá no início. Estou trabalhando, estou super alegre com o que faço, é ainda melhor do que pude desejar para mim mesma nesse ano. Gosto da minha casa, dos novos amigos, da minha relação com minha cidade natal, com a atual e com o mundo. Além de ter alimento de sobra para o meu espírito, sinto que consegui atingir meu principal objetivo.
Então, a parte boa dessa história é que tem um final feliz. Final não, que tá no meio, quiçá no início. Estou trabalhando, estou super alegre com o que faço, é ainda melhor do que pude desejar para mim mesma nesse ano. Gosto da minha casa, dos novos amigos, da minha relação com minha cidade natal, com a atual e com o mundo. Além de ter alimento de sobra para o meu espírito, sinto que consegui atingir meu principal objetivo.
“Você vai voltar?”
Não sei. Talvez com uns 70 anos. Só sei que passei por muita
coisa para ter o direito de não saber.
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