segunda-feira, 24 de junho de 2013

As últimas palavras tristes




Aquela foi a segunda vez que eu matei a minha mãe. Parece um exagero psicológico, mas quem já passou por isso sabe como é. Eu já a havia matado a primeira vez que saí de casa, há quatro anos, e há um ano resolvi matá-la novamente. Não tinha ideia do que essa ausência, em outra dimensão, me causaria. Talvez um pouco de síndrome do pânico. Talvez seja uma reação normal e todo mundo tenta colocar agora um rótulo nas emoções. Ou talvez seja normal ter um pouco de síndrome do pânico.

Sair de casa é matar a mãe da gente um pouqiunho, porque a gente não sabe o que é perder essa companhia até sair da casa dela, a gente também não sabe como é cansativo ser sempre a sua vez de lavar a louça, a gente não tem ideia da raiva que dá ter que estender a roupa num momento que não queremos senão cheira a mofo, a gente fica com saudade de um tempero diferente do nosso, mas mais que tudo isso, que nem toda mãe tem esse lado doméstico, é o cheiro do colo, é aquela pré disposição dos móveis que não teve nada a ver com os seus pitacos, é a segurança que aquela casa inatingível tem. Por isso, quando eu resolvi mudar de cidade, provavelmente por isso, tenha sido um Dia das Mães o dia mais triste que me lembro do ano passado. Porque eu gostaria de estar perto dela, e não pude. Como se tivessem cortado minhas pernas, ou aquela  parte da Constituição que me dá o direito de ir e vir, eu não tinha como comprar a passagem e não podia ir.

Minha família não é afeita a grandes convenções e formalidades, por isso acho que foi muito mais o sentimento de fracasso que a data em si, o que me abalou. Como tudo, hoje olho pro lado e só consigo rir da situação, exagerada que foi, um dia inteiro chorando pela minha incompetência de entender que as coisas precisam de mais tempo do que o que a gente concebe. Ainda dói, às vezes. Sou social demais para não ter pessoas lotando minha casa 24 horas por dia. E se dizem que ninguém é insubstituível, tenho certeza a todo tempo que é o contrário, que todas as pessoas são, mas que a gente sobrevive sem elas, apesar disso. Às vezes dói mais não ter ninguém passando blasé para tomar um café. Em uma cidade maior, isso simplesmente não acontece. Não tem cumadre, não tem amigo trabalhando pertinho, não tem esticar festa na casa de alguém nem doce far niente porque estão todos tão desesperados em chegar nos locais e depois ir para casa, fatigados das distâncias e do tempo encurtado por elas.
 
E é engraçado que as lembranças da minha antiga casa, a “Azul”, que já era só minha, fiquem agora num papel de bala, porque essa outra vida, se puxo pela memória, teve episódios ruins, como quando numa chuva torrencial ela ficou toda alagada. Lembro bem de colocar os fios dos eletrodomésticos para cima, acender algumas velas e rir com meu namorado, “vamos tomar essa cerveja que está na geladeira senão ela vai ficar choca”, com a água pelos joelhos, a lixeirinha que passava boiando por nós e a chuva caindo lá fora com ares de apocalipse.

De vez em quando eu tento lembrar como foi gostoso sair de casa, duas vezes que seja, são diferentes testes dos próprios limites, entender o que se gosta, dormir no sofá no meio da festa porque a bateria acabou e agora frequentar novas lojas R$ 1,99, aí sim, deixar tudo para trás, aí eu aceito de bom grado essas palavras tão limitadas, porque pelo menos uma vida, a última, você necessariamente tem que deixar para trás para ressuscitar em outra. Então a mãe personifica o que é isso, todos os amigos, o cheiro da casa, a temperatura perfeita no outono da Casa Azul, isso teve que ser extirpado dos meus dias e voltam, de vez em quando voltam, mas não sei ainda se nostalgia existe para o bem ou para o mal.     
 
Talvez tenha sido isso o que eu vivi, quando terminei de fazer a mudança, peguei um ônibus para vir para o Rio esperar minhas coisas chegarem aqui. No caminho, que clichê, como eu chorava por fora, não conseguia mesmo segurar as lágrimas, mas como eu ria por dentro, e depois mudava, dava mini gargalhadas enquanto a garganta fechava, vendo as linhas amarelas tracejadas da rodovia, um misto tão estranho de dever cumprido, de um cansaço absurdo, de um frescor do que viria, de uma já saudade do que ficava, e pensei, com tanto riso e choro viro um arco-íris aqui mesmo, antes de chegar, mas vou colocar os óculos e ninguém vai perceber.

Esse texto é para terminar de soltar as minhas palavras pesarosas das últimas quatro estações. Não faz meu gênero e me cansa bastante essa coisa de olhar para trás, com tanta coisa dos lados e mais ainda à frente. A partir daqui escrevo mais sobre o presente,  e o que há de triste há de ser aposentado, que palavra é capim que já foi ruminado e estraga se fica no tempo.

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