sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Na riqueza e na pobreza, a escravidão

 

Essa semana me acometeu uma dúvida atroz. Mandaram-me uma mensagem dizendo que a Ancine abriu concurso. Salário de cerca de dez mil reais. Quinze vagas só para a minha área. Me deu um nó.

Será que não estava na hora de buscar a minha estabilidade? Fiz uma breve pesquisa, havia cursinhos preparatórios começando agora, o investimento para fazer a prova sairia por uns mil reais, não é tão caro para o possível resultado, mas bem salgadinho para quem ainda não tem lá muitas moedas sobrando no fim do mês. Para completar a missão de me confundir completamente, fiquei imaginando o que daria para fazer com esse dinheiro. Engravidar? Mudar de apartamento para alguma coisa mais perto da área “nobre” do Rio? Fazer os cursos que tanto quero fazer aqui, de roteiro ou direção de cinema? E para quê, se o cargo é de quarenta horas semanais, exatamente o tempo que leva para pegar toda a sua vida e resumi-la a um domingo, que sobra pra tentar recobrar as energias na cama? Ainda assim, tentador, para a taurina que sou, na verdade é uma proposta de lamber os beiços. Mas lá no íntimo alguma coisa me travava de embarcar nessa. Talvez o medo profundo de acabar passando no raio do concurso, talvez o pavor de não passar.

Não me perguntem atrás do quê estou correndo atrás nesse momento. Estabilidade é bom e todo mundo gosta, ainda mais com um salário gordo que te permite viajar, conhecer outros países, aproveitar a vida. Mas eu também sei de algumas coisas simples que fazem extremamente feliz, como entrevistar pessoas interessantes, conhecer lugares novos, escrever histórias, me aproximar de gente maluca. E até que falando assim, eu já estou conseguindo tudo isso, só quero mais, e num escritório é muito provável que não aconteça nada dessas coisas em profusão. Mas quem sabe nas férias?...

Resolvi que a melhor forma de chegar a uma conclusão era exatamente conversando com pessoas que já alcançaram a tão querida estabilidade. Tenho alguns amigos, assim, digamos que fantásticos. Extremamente inteligentes, ocupam diversos cargos em grandes empresas ou instituições, todos efetivados em cargos públicos. E todos me dão uma impressão de levarem uma vida feliz, mas cá com os meus botões eu gostaria que eles tivessem mais tempo para explorar seus lados criativos, que são tão impressionantes quanto a estabilidade que conseguiram galgar. A dúvida, portanto, permanecia.

“Faz! Tenta sim”, foi o que todos responderam de cara. Aí sempre se seguia a minha explicação, uma verdadeira palestra que todos ouviram com a maior atenção, na qual eu defendia de onde minha dúvida saía: o que esses dez mil representavam não era a minha estabilidade, mas sim a compra da minha criatividade. “Tenta, se você passar, aí você vê”, era a segunda resposta de todos eles. Mas ninguém é tão ingênuo de pensar que se eu passar num troço desses vou ter autocontrole o bastante para fugir da raia blasée, “não, obrigada, prefiro continuar tentando ganhar dinheiro com minha criatividade”. Rá.

Essa loucura dos concursos públicos no Brasil fez, de fato, um monte de gente ficar doida. E o corporativismo traz em si um sistema hierárquico fajuto que me parece começar a ruir. Vou explicar: um desses amigos fantásticos me mandou um texto muito interessante que trazia uma frase que me marcou demais. Ela dizia mais ou menos isso: “Trabalhe corretamente e com afinco por oito horas todo santo dia que, se você merecer e der sorte, virará patrão e trabalhará doze horas por dia”. Lembrei de cara de um outro amigo, também concursado, que já recebeu várias propostas de promoção em seu emprego. Recusou todas. Diz ele que o dinheiro que ganha já está bom para a vida que leva, e o que viria a mais com a promoção não paga a qualidade de vida que ele sabe que perderia com o acúmulo de responsabilidades. (Esse amigo, em outra ocasião, já esteve internado num hospício, e hoje tenho certeza absoluta que é porque o mundo inteiro é doido e ele é lúcido demais).

Se você pensa que esse é um caso pontual, preste atenção: outra amiga já teve um belo salário sendo jornalista (!!!!!!) e pediu pelamordedeus por uma “despromoção” (acho que o termo foi cunhado por ela, porque antes a prática não existia no mundo). O chefe se recusou, e ela pediu demissão pouco tempo depois. Hoje ela é funcionária pública, portanto já passou também em um concurso, recebe a metade do salário grande que recebia antes, mas trabalha em sua área, cinco horas por dia, com sábado, domingo, feriado.

Voltando ao primeiro amigo, o que me passou o texto. Ele mesmo, esses dias, estava também numa dificuldade tremenda de dizer não ao chefe, que quer promovê-lo a todo custo, e isso há anos, e olha que o cargo que ele ocupa atualmente não é dos menores. Dito isso, ao fim dessa semana ele me ligou, comunicando que chegara a uma decisão muito importante de sua vida. “Vou falar com meu chefe. Vai ser um inferno, mas terei que encará-lo e dizer que não quero a promoção. Está na hora de engordar minha vida”, disse-me.

No fim das conversas, todos chegaram à conclusão de que eu não deveria sequer tentar o tal concurso. “Não quero te ver despachando processo burocrático, quero te ver na TV, ou escrevendo, ou fazendo alguma coisa que sei que vai importar”. “Você está chegando no tempo normal das melhores coisas começarem a acontecer, não se precipite”. “Você é boa demais e ainda vai descobrir isso, e vai ganhar o salário que quiser fazendo o que faz”. Frases elogiosas demais, que a amizade faz brilhar a percepção, eu sei, mas para mim as palavras podem virar escapulários, guardamos na memória para recorrer a elas, como orações, bençãos, mantras se necessário.

A conclusão maior – e mais triste – dessa semana, para mim, saiu de um telefonema com o primeiro amigo, não o louco do hospício, o louco que vai recusar a promoção desejada pelo mundo inteiro, graças a Deus, que ele está começando a colocar os pés no chão, e no chão que ele quer, o que é mais importante, e conversando a gente pensou junto, a falta de dinheiro escraviza, mas a abundância dele, também.  A minha segunda adolescência é minha grande chance de fazer de novo, e que seja assim. Nem que eu tenha que voltar a tomar xiboquinha. Não, prefiro ficar sóbria a tomar xiboquinha. Mas se precisar, talvez eu tente umas caipirinhas, em algum lugar novo, com essa gente maluca, bacana e despromovida.

Um comentário:

  1. Texto sonho, que resume bem o quanto o Rio lhe fez bem. Maturidade. Chato isso, né?! Mas veio... ;)

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