segunda-feira, 2 de março de 2015

#universo30: Dois pés pretos e a epifania da escuridão

                                  Dois pés no sol. Helena, 2013

Aquela noite fui dormir com os meus pés, pretos. Ignorando a recomendação materna persistente por anos, Vá lavar os pés, Não durma com os pés pretos, Você vai pegar verme, tantas e tantas vezes ouvida que virou uma mania, uma agonia, mas naquela noite não, naquela noite meus pés pretos eram testemunhas da minha epifania.

Durante um vídeo entre luzes e meia luz, me reencontrei. Entendi tudo de novo, tudo o que eu já sabia, há tanto tempo, organicamente. Como que de forma tão estranha, artificial, o mundo foi me fazendo esquecer dessa verdade, sou um molusco, um bicho ermitão, e um monte de coisa se encalacrou em mim, mas aquele professor, frase por frase, ia retirando as anêmonas e  aos poucos eu ia vendo uma imagem perfeita da superfície da minha concha de novo.

                                                  retirado da web

“O artista é um sujeito que, por um movimento que não se sabe ao certo, ele dá as costas, digamos, à região iluminada da sociedade, à região iluminada do próprio ser e vai em direção à escuridão”, dizia o professor na tela, enquanto eu achava um sentido entre Artaud, Homero e Platão, que de repente me explicavam porque fui de preto na minha festa de quinze anos e zombava da decoração burgueso-disneyana que armaram como uma “surpresa” pra mim.

                                          Festa de 15 anos, 1997

E então entendi porque depois de 17 anos eu ainda compartilho determinadas frases no meu Facebook tão lotado de gente que não faz a menor ideia de quem eu seja, um prato cheio para fazer mau juízo, pra errar o nome de um autor, para me jogarem tomates no ponto de ônibus. E quem se importa? E quem nunca? Eu não estou me transformando numa pessoa melhor não. Mas talvez, só talvez, há quem me entenda, e ando preferindo ficar do lado desse tipinho por enquanto.

                                       retirado do Facebook

O homem continuava a falar, "o artista é um revoltado por natureza", enquanto eu me reduzia nos pixels da tela iluminada. Ele me falava em hebraico, língua antiga e já não mais falada, que eu entendia em algum ponto do meu cérebro, reconhecia de outra vida, mas que já precisava de tradução. 

Chorei. Nem os remédios da blaseéividade conseguiram disfarçar meu agora distraído bicho ermitão. "Você está bem?", perguntou alguém, "estou, sim, não, nem sim nem não, estou em crise", respondi. Por puro respeito segurei meus prantos, que vontade de chorar até engasgar, até que os soluços marcassem minha garganta e meus olhos ardessem daquele bom fogo. A crise nada mais é do que um reencontro que você andou adiando por tempo demais, e agora eu entendia. 


                                                                  Caixa d'arco. Helena, 2012

Aquela noite resolvi dormir com meus pés pretos. Não lavei meu suor, nem o pó do meu corpo, e guardei verdadeira sujeira nas minhas raizes, como disse, testemunhas do meu reconhecimento na escuridão. Tão rebelde quanto no dia em que comi espetinho de camarão na praia, pra que servem as mães, se não para ficarmos uma vida tentando fazer escondido o que elas imploram para não fazermos nunca, sinto muito minha mãe, mas você iria concordar comigo, não era possível abrir mão de nenhum grão, só no dia seguinte, quem sabe, mas naquela noite não, eu não podia correr o risco de me esquecer novamente.

Hoje acho que vou relembrar. Mas se eu esquecer, sempre posso assistir novamente. 



Entre Homero e Platão: Agnaldo Farias at TEDxUSP:




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