sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Homeless




Esqueci a escova de dente oficial na outra casa. Aqui só veio comigo uma condor laranja, daquelas que o cabo vira uma capa para proteger as cerdas, uma escova vagabunda feita pra estar em qualquer lugar, até na bolsa de trabalho, onde tudo vive. Do lado dela, em cima da pia, uma pasta de dente velha demais, nem é sensitive, eu que uso sensitive há tanto tempo, ela tá lá, dobrada no meio, esperando desesperada a hora de descansar em paz. No banheiro também tem cotonete, muito cotonete, aquele pote redondo grandão, que boa surpresa, ainda bem que eu comprei um desses antes de viajar.

Tem algum tempo que eu não escrevo aqui, desculpem a quem procurou mais coisa e não encontrou. O motivo é que estou homeless: fui chamada às pressas para ir à Vitória para compor a equipe do Festival de Cinema de lá. Esse trabalho me orgulha bastante. É cheio de dificuldades. Não, é só feito de dificuldade, ser produtor de evento é resolver pepino, basicamente. Ainda mais quando o evento não está nadando em patrocínio. Enfim. Exatamente o que eu precisava para alimentar o meu Espírito Prático, tão adormecido por tardes de sesta depois regadas a café e leitura e escrituras, só o irmão tava ganhando comida, o Espírito Criativo, o Prático, coitado, tava “praticamente” morto. Rá.

Mas então, fui chamada assim, às pressas. Gosto dessa expressão porque fica parecendo que a gente é super importante. Ninguém dispensável é chamado “às pressas”, e, se eu fui, é porque precisavam de mim, o que é super legal e a cara dos trinta anos. Então eu fui. No meio da quizumba da estreia do programa. Gostaria de estar acompanhando mais de perto a repercussão, mas não deu, e talvez seja melhor assim. Só sei que fui, e agora parei um pouco para escrever porque estou no Rio, vim para gravar no meio da produção do Festival, o que é muito legal, afinal, há duas semanas larguei tudo uma farofa aqui, agora larguei tudo uma farofa lá, dá uma ventania no cérebro, essa coisa de ponte aérea rapidinho pra resolver uns troços, você esquece até a escova de dente oficial, achava você, na hora de fazer a mala, que não ia fazer falta, quando na verdade tudo o que a gente precisa pra se sentir em casa é a porra da escova de dente oficial, tem que estar gasta, senão não adianta, não adianta ter uma boa agora, o efeito é o mesmo da condor laranja vagabunda.

Mas esse papo é besta, e o que eu queria mesmo dividir com vocês é sobre as minhas impressões das cidades, que estão mudando. Começo a ver Vitória de um jeito diferente. Uma cidade emprestada. Familiar, mas emprestada, de ladinho. Começo a ver como a mobilidade é péssima, como a orla é bonita. Percebo como a cidade passa a ser feita de pessoas, aquelas pessoas que sincretizam o que sempre vou buscar lá. E que meus olhos já não estão mais anestesiados quando passa algo novo, construído nos últimos meses. Começo a ficar de turista, procurando os botecos recém surgidos pra não ficar muito marginal de tudo que nasce.
 
Daí que veio essa primeira impressão de que eu estava homeless. Desculpa o termo em inglês, mas tem umas palavras de outras línguas que são melhores que o português – poucas, mas existem.  E estar homeless é essa sensação de que você não pertence a lugar nenhum. Ou que carrega a casa nas costas. Gosto do jeito que Osho descreve isso no seu tarô – ele fala de uma tartaruga, que carrega a casa nas costas, mas a casa não é tudo que você precisa, é só o que você precisa. Tipo uma escova de dente, ou menos que isso, se você for mais evoluído budísticamente falando.  

Hoje, pela primeira vez, recebi um tapa. Desci no Santos Dumont blaseé, e acho que foi a primeira vez. Blaseé, sem olhar pros lados, e com aquela alegriazinha no coração de ter voltado pra casa, de pertencimento à cidade. Agora, é aqui. Que coisa estranha. Lógico, quando fico aqui por muito tempo tem um pedaço que fica de fora, que é toda a minha infância, porque o que tenho é um conhecimento da cidade construído pelo Google Maps e não pelo empirismo. Aprendo o Rio em regras escritas em caixinhas verdes, como nos livros de inglês, e não ouvindo os mais velhos falarem sobre isso. E nem os  mais novos. Talvez por isso eu sinta que é estranha a sensação de “que bom! Voltei PRA CASA” ao descer de um Santos Dumont. E como acho mais fácil lidar com as coisas aqui, e como fico patinando para pegar um ônibus em Vitória.

Pertencimento é tipo um interruptor, você pode virar uma chave que ele muda. Sabia? Não é ser homeless, apesar do que, pra mim, a ausência de um sentimento de casa pode ser a presença da casa em todos os lugares, é a essa conclusão que ainda não cheguei, se a gente é um ou outro ou tudo. Só sei que fui pega de surpresa com essa sensação hoje, eu realmente não estava esperando por isso, e tive que dividir com um amigo que já mudou algumas cascas de vida, e ele achou tão simples isso tudo, a minha grande descoberta. Acho que é porque ele já é three way.

2 comentários:

  1. Muito legal ler esse post, já passei exatamente por isso e com essas 2 cidades. Agora voltei a morar em Vitória mas a sensação de homeless continua, e acho que será eterna!

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